Alma lavada
A água que cai do chuveiro mistura-se com as suas lágrimas, o calor disfarça os olhos vermelhos e o barulho da água sufoca o seu soluçar. Nestes breves momentos, ela permite-se sentir toda a tristeza que assola o seu coração, toda a dor que a tolhe. Estes são os seus minutos consigo, quando ela despe a armadura e é ela própria, com todo o sofrimento que a afunda até cair de joelhos na laje fria. Sussurra uma prece, pede aos anjos que a ajudem a levantar novamente, que a força não a abandone, porque a luta não termina aqui e a vida espera-a impaciente do lado de lá da porta.
Lava o cabelo duas vezes, porque perdida nos seus pensamentos esqueceu-se se o tinha lavado ou não, esfrega o corpo com intensidade, numa vã tentativa de lavar o sofrimento, fecha os olhos contra o jorrar da água e as imagens passam sem cessar na sua mente. Todos os momentos de carinho, amor e desejo que se perderam, contraste flagrante e sórdido com a indiferença de que é alvo agora. As dúvidas rodopiam na sua cabeça, as perguntas que não fez presas na garganta junto com o oxigénio que sustem nos pulmões. Não há água que lave uma alma perdida, todos os dias ela espera sair do chuveiro com a alma lavada, mas sai apenas lavada em lágrimas...